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Editor: José Trindade



domingo, 20 de março de 2011

Crônicas Medievalistas IV: QUEM SOU EU?

Por Zé Lins


Tinha acordado naquela malfadada segunda-feira com uma enorme dor de cabeça, nem tanto por bebida ou sono mal curado, mas por uma permanente tentativa de lembrar meu nome e da mulher que estava ao meu lado na cama. Ela, aliás, ali deitada, serena e cativa, também acabara de acordar com a maldita enxaqueca e, o pior, com o torpor próprio das mulheres, achando que estava sendo enganada e que ali não era seu lugar.



Os dois, cara-a-cara, se perguntando “quem és?, “quem sou eu? E outras perguntas que, em dias normais, deixamos aos nobres filósofos fazerem, não tanto pela complexidade das mesmas, mas pela divagação das respostas: longas e indefinidas. Depois de uma breve confabulação e reflexão do tipo sem memória, chegamos a três conclusões, talvez mais elementares que plausíveis: i) devíamos nos conhecer, quiçá ate viver juntos; ii) estávamos na “nossa casa”, pois havia fotos e lembranças dos dois em diversos pontos da mesma; iii) a repentina amnésia, era o que parecia, tinha ocorrido durante o sono daquela noite, pois havia sapatos, gravata, roupas diversas jogadas ao lado da cama, o que nos fazia pensar que no dia anterior as coisas estavam normais.

Dedução tão brilhante não ajudava muito. A primeira grande tarefa do dia seria encontrar nossas identidades, procurando papéis, certidões, documentos, seja o que for que mostrasse quem éramos nós, quem era eu, quem era ela. Ao remexer em documentos e papéis, conclui que me chamava “Abraham Lincoln”, pois cada um acha de si o que melhor lhe convém, como aquele impresso próximo a uma máquina com teclado anunciava “Abraham Lincoln genial e justo” e como era assim que eu me julgava, mesmo desmemoriado, adotei tão prodigiosa identidade. Minha pretensa esposa se contentou com o papel verde que encontrou com o rosto estampado de alguém uns 30 anos mais jovem, chamada Maria das Tantas e por Tantas ela se batizou.

Os espantos não pararam por ai, na primeira saída do quarto, nos deparamos com dois estranhos que também pareciam estranhos entre si e entre nós. Eram dois jovens, na faixa de 15 a 18 anos, o rapaz com o rosto espinhado, normal para a idade, a moça com olhos castanhos e descabelada aos gritos, não sabendo quem era e porque estava naquela casa com aquele garoto magrelo e comprido, pior que não saber a identidade era não saber onde tinha deixado a escova de cabelos. Aliás ansiedade idêntica a minha pretensa esposa e, provavelmente, mãe daqueles dois jovens.

Aplicamos aos dois a mesma solução, procurar a identificação e acalmar o espírito. Ao sairmos na rua a balbúrdia era total, o mal de amnésia repentino tinha atingido outros. O pandemônio era grande: mototaxistas com grandeza de taxistas, religiosos sem a decência profana e as senhoras sem nomes. Meu espírito organizador se aflamou, num grito estridente ordenei: CALMA! CALMA!!

O que esta havendo? Indaguei a um velho senhor se sabia algo de como aquilo aconteceu. A resposta do velhinho foi seca: “eu também não sei meu nome e nem o que tenho que fazer”. A confabulação durou pouco, achei melhor retornarmos para minha ou nossa casa (as dúvidas eram muitas). O rapaz propôs que verificássemos os aparelhos escuros localizados em todos os compartimentos em ponto central. A lógica era boa: se aquilo estava em todos os espaços significava que era muito importante, talvez nos desse alguma resposta.

A “visão única”, assim denominei o tal aparelho, podia ser acionado ou ligado por um outro aparelhinho cheio de números.  Nos surpreendeu o aparecimento nas telas, achamos que assim se denominava, de um casal galante, com voz sincronizada e melosa. Suas falas foram cordiais: “transmitimos nos diversos canais para pedir calma, para não haver desespero”.

A mulher ponderou que “no mundo inteiro uma estranha forma de amnésia estaria ocorrendo, o esquecimento seria de fatos básicos: nome, o que faz, com quem se relaciona, onde mora, e assim por diante”. O homem na telinha vociferou “que outros conhecimentos parece que não se apagaram, atingindo somente a memória corriqueira, sendo possível reconstruir o conhecimento momentaneamente apagado”. Concluíram com o alerta que era “para se manter em suas casas, pois os acidentes e desastres com as máquinas, chamadas carros, eram muitos”.

Passadas algumas horas a mulher voltou a falar, com a melancólica e adocicada voz: “os cientistas que estudam o caso recomendam que voltem a dormir”. A voz chata e compreensível passou a explicar que “após o sono às memórias se equilibram e tudo volta ao normal, em quase todos os casos estudados”.

Dormir, dormir de novo era a solução. No dia seguinte já sabendo que não era Abrahan Lincol e mais calmo, fui me inteirar o que de fato foi aquela zorra. Segundo os estudiosos: “excesso de informação”, boa, má, big brother, muita internet e, obviamente, a TV, tinha produzido um “stress coletivo”, o que fez com que momentaneamente nossa computador orgânico tivesse um “bug”, coisas da hiper-modernidade!

Bem, em dois dias somente pequenas lembranças do dia sem memória. Na internet e nas tv’s continuavam as crises pessoais, sociais, econômicas, o execesso de lixo e de boa informação, mas agora todas traziam uma tarja de alerta: “Cuidado não use em excesso, prejudicial a saúde!”.


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