Por José Trindade (Professor da UFPa)
A indicação dos fatores que definem as sociedades capitalistas modernas desde o século XVIII podem ser focados em três componentes: i) a acumulação de riqueza sob a forma de valor-capital, seguindo um princípio de “motor-perpétuo”;ii) porém regrado pelas crises sistêmicas e periódicas e iii) pelas ações coercitivas, controladoras e ativistas do Estado capitalista.
A acumulação de capital se processa por duas vias historicamente convergentes: a concentração e a centralização da riqueza socialmente produzida. O capital constitui uma relação social básica, cuja forma de expressão se dá pelo controle do agente capitalista sobre os meios de produção e apropriação da riqueza gerada pelo trabalhador no processo produtivo. A riqueza gerada é concentrada e controlada por esse agente social, o que possibilita crescente disponibilidade de valor-capital em suas mãos.
Na medida em que se processa a concentração de riqueza via acumulação, essa crescente disponibilidade possibilita o efeito atrator e centralizador sobre outras massas de riqueza produzidas em outros territórios ou mercados capitalistas dispersos ou sob controle de outros empresários, porém de menor potencial ou capacidade de atração ou concorrência capitalista.
Convém fazer breve parentese: no capitalismo, a principal relação social é a de produção e apropriação da mais-valia (lucro) fundada em relações contratuais entre o capitalista (comprador da mercadoria força de trabalho) e o trabalhador (vendedor da mercadoria força de trabalho). Entre eles trava-se uma troca de equivalentes no processo de circulação de mercadorias: a força de trabalho, mercadoria que é a única propriedade do trabalhador, é comprada pelo capitalista, que oferece em troca a forma monetária salário, o preço da mercadoria força de trabalho. Essa aparente igualdade na forma do trato jurídico torna a relação salarial condição central tanto da reprodução econômica do sistema, quanto da sua configuração política.
Do mesmo modo como a acumulação de riqueza na forma de capital requer o movimento continuo de emprego de força de trabalho e uso de meios de produção (máquinas e ferramentas) para o processamento de novas mercadorias com vistas a obtenção de lucro, o capitalismo requer um Estado regulador e coercitivo sobre as relações sociais. O Estado cumpre a função central de controle e legitimação da ordem capitalista, principalmente ao encobrir as relações de apropriação da mais-valia e justificando positivamente a propriedade privada dos meios de produção, sob a forma de aparente universalidade e igualdade dos direitos de propriedade.
As crises econômicas são sistêmicas e não eventos ocasionais como propalam alguns. Podemos ponderar que o principal aspecto acionador das crises é a chamada superprodução de capital, ou seja, a crescente capitalização da produção que gera contraditoriamente uma massa crescente de mercadorias que não encontram o porto seguro da venda (realização). Esse processo gera a interrupção do ciclo de crescimento com o decorrente declínio da taxa de lucro e estabelecimento de uma série de pontos de estagnação e declínio no mercado.
A retomada da análise do desenvolvimento do capitalismo e, especialmente, de suas contradições, crises e ações do Estado constituem a base da análise de dois livros de grande importância para o entendimento dos acontecimentos econômicos e políticos recentes ao nível internacional e brasileiro. Os trabalhos de David Harvey e Eric Hobsbawm, por mais que ambos publicados na década passada (2004 e 2007, respectivamente) constituem textos problematizadores e, até certo ponto, elucidativos do nosso atual complexo presente-futuro.
Harvey, em seu “O Novo Imperialismo”, assinala que certas características da sociedade estadunidense (EUA), tal como o “inflexível individualismo competitivo”, soma-se aos padrões de domínio econômico, político e militar dessa potência imperial, para impor o atual perigoso jogo de domínio internacional.
Harvey, que é professor da City University of New York, bebe em Marx para compreender como a acumulação capitalista produz as modernas formas de domínio imperialista, denotando as diferenças entre o imperialismo britânico (1814/1914) e o que ele denomina de Novo Imperialismo Norte-Americano. O desiderato desse novo imperialismo para ser entendido necessita da compreensão de como interagem a acumulação interminável de propriedade e a acumulação interminável de poder político. Essa interação foi inicialmente identificada por Hanna Arendt e foi complementada pelas análises de Arrighi em torno da história comparada das diferentes hegemonias globais.
O capital monetário, a capacidade produtiva e a força militar são os pilares em que se apóia a hegemonia no capitalismo. Vale reforçar que a consolidação do poder político burguês no âmbito dos Estados europeus foi uma precondição necessária a uma reorientação territorial segundo os requisitos da lógica capitalista. Harvey observa que a partir do final do século XIX, os EUA passam gradualmente a mascarar o caráter explicito das conquistas e ocupações territoriais sob a capa de uma universalização não espacial de seus valores, discurso que culminaria na atual retórica da globalização. Neste ponto temos uma importante convergência entre Harvey e Hobsbawm.
Para o historiador inglês Eric Hobsbawm, também se tem a universalização de certos padrões econômicos e culturais enquanto cerne de construção da hegemonia internacional estadunidense. Hobsbawm, porém, enfatiza que o mundo por ser demasiado grande, complexo e plural inviabiliza qualquer possibilidade de que os Estados Unidos, ou qualquer outra potência singular possam estabelecer um controle duradouro, mesmo que o desejassem sobre a economia mundial. O questionamento então caminha para a inevitável indagação de como se consolidará a hegemonia estadunidense ou se a atual crise já demarca o campo do devir do imperialismo norte-americano.
Os recentes episódios internacionais econômicos e políticos parecem reforçar a percepção de Hobsbawm. A ausência de autoridades globais não consegue ser substituída pela presença de uma única superpotência, com o agravante, como mostra o recente episódio da crise cambial internacional, que a adoção de medidas de auto-proteção por parte desta superpotência enfraquece os elos de convergência hegemônica e o aparecimento de crescentes vozes destoantes entre sub-potências regionais.
O autor de “Globalização, Democracia e Terrorismo”, denota que quatro movimentos estariam por detrás das tentativas de reviver “um império mundial” (o primeiro teria sido o Britânico): i) o acelerado processo de globalização desde a década de 1960, contudo com conseqüências deletérias de elevação ou agravamento das desigualdades econômicas e sociais entre e intra-nações, além da incapacidade, até aqui, de efetivação de uma globalização da política; ii) o colapso do equilíbrio internacional de forças oriundos da Segunda Guerra Mundial, especialmente o desmantelamento da antiga URSS e o desaparecimento de forças divergentes necessárias ao equilíbrio do sistema de forças; iii) a crise dos Estados nacionais soberanos e/ou a fragilização desses agentes frente outros agentes de acumulação, tais como as mega transnacionais; iv) o regresso de catástrofes humanas maciças e a presença de medo generalizado, seja na forma mais simples de violência causada por disputas banais, por exemplo, a violência juvenil, até formas como a expulsão de populações e o genocídio.
Por mais que os autores não tenham se detido na análise da crise recente do capitalismo central, mas no geral apontam para desdobramentos bastantes sérios e a necessidade de compreensão e ação por parte da esquerda. O agravamento da crise estadunidense, como assim parece estar dada, tem levado ao avanço do discurso fascista tanto nos EUA, quanto na Europa, como mostra o recente episódio no Arizona envolvendo o baleamento da deputada da esquerda Democrata Giffords e um aparente “maluco”, porém claramente influenciado pelo discurso fascista do “Tea Party” e de sua líder Sarah Palin. Mesmo no caso brasileiro, as recentes eleições mostraram que os setores mais conservadores das elites nacionais parecem bastante dispostos a sectarização e direitização do discurso e da ação.
As análises em foco concluem com o impasse quanto aos desdobramentos da economia e sociedade estadunidense, do mesmo modo quanto as incertezas que assopram sobre o desenvolvimento internacional. Da nossa parte nos parece que as condições brasileiras de se impor soberanamente e colaborar com uma saída propositiva, que substitua o medo e a militarização permanente pela busca de um projeto político, econômico e social diferente, devem ser nossas metas a serem propostas e buscadas.
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