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Editor: José Trindade



quarta-feira, 27 de abril de 2011

O direito humano à guerra

Postamos artigo do Prof. José Luís Fiori, publicado no Valor Econômico de hoje. No debate quanto as “justezas” da intervenção militar de forças lideradas pela OTAN, Fiori observa que “a própria idéia de uma guerra em nome dos 'direitos humanos', contém uma contradição conceitual, e é por isso que todas elas acabam se transformando, inevitavelmente, numa 'guerra de conversão', ou numa nova forma de Cruzada”. Leiam na íntegra.

PD13


Por José Luís Fiori
27/04/2011
Do Valor Econômico

"Eu via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras. Por causas fúteis ou mesmo sem motivo se corria às armas e quando já com elas às mãos, não se observava mais respeito algum para com o direito divino nem para com o direito humano, como se pela força de um edito, o furor tivesse sido desencadeado sobre todos os crimes". Hugo Grotius, "O Direito da Guerra e da Paz", 1625

Hugo Grotius (1583- 1645), pai do direito internacional moderno, foi herdeiro da tradição humanista e cosmopolita da filosofia estóica, que formulou, pela primeira vez, a ideia de uma sociedade internacional solidária e submetida à leis universais. Mesmo sendo cristão e teólogo, Grotius desenvolveu a tese de que essas leis universais faziam parte de um "direito natural comum a todos os povos...tão imutável que não poderia ser mudado nem pelo próprio Deus". Para o jurista holandês, o direito à segurança e à paz faziam parte desses direitos fundamentais dos homens e das nações. Apesar disso, Grotius considerava que o recurso à guerra também era um direito natural dos povos que viviam dentro de um sistema internacional composto por múltiplos estados, desde que a guerra visasse "assegurar a conservação da vida e do corpo e a aquisição das coisas úteis à existência". Mas apesar disso, Grotius não concebeu nem defendeu a possibilidade de que se propusesse como objetivo a defesa ou promoção internacional dos próprios direitos humanos. Em parte, porque ele era católico e conhecia a decisão do Concílio de Constança (1414- 1418) que fixara a doutrina da ilegitimidade da "conversão forçada", e de todo tipo de guerra visando a conversão de outros povos, como tinha sido o caso das Cruzadas, nos séculos anteriores.

Direitos Humanos é um terreno cercado de boas intenções, mas minado pela hipocrisia e pelo oportunismo

Depois do Concílio de Constança, o conceito de "guerra justa" ficou restrito - para os católicos, e para quase todos os europeus - às guerras que respondessem a uma agressão, e que fossem caracterizadas como um ato jurídico, destinado a reconstituir o status quo ante. Grotius não desenvolveu o argumento, mas se pode deduzir, do seu ponto de vista, que os direitos humanos, como a fé religiosa, são uma luta e uma conquista de cada homem, e da cada povo em particular. Sobretudo, porque ele foi um dos primeiros a se dar conta que num sistema internacional formado por múltiplos estados, era inevitável que coexistissem várias "inocências subjetivas", frente à uma mesma "justiça objetiva". Não havendo forma de arbitrar - "objetivamente" - sobre a razão ou legitimidade de uma guerra declarada entre dois povos que reivindicassem uma interpretação diferente, dos mesmos direitos fundamentais, dos homens e das nações. Nesse sentido, a própria ideia de uma guerra em nome dos "direitos humanos", contém uma contradição conceitual, e é por isso que todas elas acabam se transformando, inevitavelmente, numa "guerra de conversão", ou numa nova forma de Cruzada.

Em última instância, esse também é o motivo pelo qual a discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, se transformou - depois do fim da Guerra Fria - num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a arrogância de alguns estados e governos que se auto-atribuem o "direito natural" de arbitrar e difundir, pela força, a tábua ocidental dos direitos humanos. Para compreender a complexidade e a fluidez dessa fronteira, basta ler um outro grande filósofo iluminista e cosmopolita, o alemão Immanuel Kant, dividido entre a sua utopia de uma "paz perpétua", e o seu desejo de converter o "gênero humano" à "ética internacional civilizada". Para Kant, "no grau de cultura em que ainda se encontra o gênero humano, a guerra é um meio inevitável para estender a civilização, e só depois que a cultura tenha se desenvolvido (Deus sabe quando), será saudável e possível uma paz perpétua". ("Começo verossímil da história humana", 1796)

Para ver na prática, como se desenvolvem essas guerra kantianas, basta observar o caso mais recente da intervenção na Líbia, iniciada por um governo francês de direita e em estado de decomposição, seguido por um governo inglês conservador e absolutamente inexpressivo, e por um governo americano ameaçado por graves dificuldades internas. Tudo começou sob o aplauso internacional de quase todos os defensores dos direitos humanos, de direita e de esquerda, que consideravam se tratar de um caso indiscutível de "guerra legítima", feita em nome da defesa de uma população agredida e desarmada. Mas já agora, depois de algumas semanas de morticínio, de lado e lado, vai ficando cada vez mais claro que o que está em questão, não é o direito à vida e à liberdade dos líbios, nem tampouco, a promoção de uma democracia universal. Ao mesmo tempo e na medida mesmo em que a guerra da Líbia vai se transformando, de forma cada vez mais clara, num exercício militar experimental de implantação de uma cabeça-de-ponte, para uma intervenção futura, eventual e mais ampla, das forças da OTAN, na África.

Agora bem, olhando de outro ângulo, se pode observar uma recorrência e uma dificuldade análoga, no debate e nas iniciativas dos organismos internacionais, com relação à defesa e à promoção dos "direitos fundamentais", ao redor do mundo. O que se tem assistido nos últimos anos é quase sempre o mesmo filme: de um lado se posicionam e votam os inocentes úteis e os defensores generosos do princípio, do projeto e da utopia; e do outro, se posicionam os países que se utilizam do seu apoio e da sua mesma retórica para projetarem seu poder e sua estratégia geopolítica. Por meio de "guerras humanitárias", promovidas ou lideradas, invariavelmente, pelos mesmos países que compõem o atual "diretório ético e militar do mundo", ou seja: EUA, Grã Bretanha e França.

José Luís Fiori é professor titular e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ, e autor do livro "O Poder Global", da Editora Boitempo, 2007. Escreve mensalmente às quartas-feiras no Valor.

Um comentário:

  1. Nos posicionamos desde o início contrários a "intervenção humanitária". De uma maneira ampla o uso de força militar já de ante-mão apresenta as credenciais contrárias aos princípios de direitos dos povos e de direitos humanos.

    No caso específico, desde muito nos posicionamos considerando que tal intervenção compunha uma ação imperialista, entendida enquanto conjunto de interesses geopolíticos das economias capitalistas centrais, as mesmas identificadas por Fiori em seu artigo.

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