O futuro da classe média
por Silvio Caccia Bava
Passado o momento das eleições, em que a imagem de um “Brasil que deu certo” foi apregoada aos quatro ventos, é preciso reconhecer que, mesmo com a maré boa de crescimento econômico e com as políticas sociais do governo federal que permitiram uma redução substantiva do número de pobres e miseráveis, estamos muito longe de superar nossos problemas estruturais, especialmente a desigualdade social, que continua sendo das maiores do mundo.
A rigor, os analistas que convidamos para colaborar com esta edição, identificam como classe média apenas o segmento que em 2009 correspondia a 7,7% da população, a chamada “alta classe média”, como aponta Waldir Quadros; os demais são trabalhadores qualificados que melhoraram seu padrão de consumo; são também os trabalhadores menos qualificados que tiveram acesso a uma renda maior em razão dos programas sociais.
A melhoria do poder aquisitivo e das condições de vida se deu de maneira mais significativa entre os mais pobres, na base da pirâmide social. Ao lado disso, o crescimento econômico e a abertura de novos empregos formais geraram oportunidades de ascensão social para que alguns setores menos pobres possam aspirar a se tornar classe média. As estimativas são de que cerca de 1,7 milhão de pessoas possa vir a se beneficiar deste momento e, neste movimento de ascensão social, venha a participar desta “alta classe média”. Ainda que seja expressiva esta quantidade de pessoas, ela não permite projetar, num futuro próximo, que o Brasil se torne um país de classe média.
O aumento do consumo é uma realidade que pode se verificar em muitos setores e que interessa primeiramente aos beneficiários diretos, mas também a todos que apostam na consolidação do mercado interno. Mas este aumento do consumo não reflete somente os ganhos de renda, ele também se deve a um crescente endividamento pessoal, que já chega hoje em torno de ¼ dos ganhos mensais, conforme dados do Banco Central1. Em comparações com a capacidade de endividamento pessoal em outros países, até que estes valores são moderados, mas não podemos esquecer o fator da desigualdade e da baixa renda da grande maioria no Brasil, que não estão presentes nos países onde o endividamento é maior.
Se tudo correr bem e o Brasil continuar crescendo a taxas importantes nos próximos anos, não haverá problema, este endividamento é parte da própria estratégia de ampliação de mercado e beneficia mais a uns que a outros, mas beneficia a todos. Se, no entanto, nossa economia sofrer o impacto da desaceleração dos países industrializados (que consomem algo como 86% da riqueza produzida no mundo) e da sobrevalorização do real (que estimula uma política de importações e ameaça os produtores nacionais), as coisas podem tomar outro rumo e os endividamentos podem se tornar um problema.
Os segmentos de crédito que tem mais crescido são o da compra de automóveis e de imóveis. E, nestes casos, estamos falando de financiamentos de médio e longo prazo. Se considerarmos que os períodos de crescimento se alternam com períodos de recessão nos ciclos do modo capitalista de produção, se considerarmos que as razões da crise financeira de 2007-2008 não foram debeladas e os global players das finanças continuam animando o cassino financeiro internacional, ainda mais poderosos que antes, então são necessárias políticas que defendam o mercado interno e a produção nacional, para garantir empregos e proteção contra as crises que virão.
Uma parte importante dos benefícios que asseguram uma melhor qualidade de vida depende dos serviços e equipamentos públicos. São eles que garantem a universalidade de certos direitos, como educação, saúde, saneamento, transporte público, moradia. E é o Estado que tem a responsabilidade de prover estes serviços e equipamentos. Há aqui uma grande frente de investimentos em razão mesmo do déficit social acumulado. Só para dar um exemplo, quase a metade das residências brasileiras não tem esgoto.
Ser classe média não significa somente possuir um pouco mais de dinheiro para gastar, significa apropriar-se de conhecimentos e desenvolver potencialidades que habilitam o cidadão a entrar em outro universo simbólico e de valores, como discute Jessé Souza em seu artigo. Para isso, o investimento em educação, e educação de qualidade, é fundamental. O acesso aos bens culturais e até sua autorrepresentação frente à sociedade, sua auto-estima, contam muito. No fundo, se tornar classe média significa abandonar ou superar aquele lugar subalterno que a educação produzida pelas elites definiu como o lugar dos trabalhadores, das maiorias. As eleições criaram condições para se pensar em um novo modelo de desenvolvimento. E o futuro da classe média depende disso.
Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis, texto retirado do Le Monde Diplomatique Brasil: http://diplomatique.uol.com.br/editorial.php?edicao=40
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